PATRÍCULA ELEMENTAR

«A nossa pequena pátria, a nossa patrícula.» B. Vian

O desprezo da extrema-direita alemã pelos valores europeus (02-02-2016)

Kai Littmann/Eurojournalist
frauke-petry_Maja_HitijFrauke Petry, líder do partido de extrema-direita chamado *Alternativa* para a Alemanha, que não pára de subir nas sondagens e tem assento no Parlamento Europeu

Frauke Petry é a chefe do AfD [Alternative für Deutschland], o partido de extrema-direita que não apenas procura copiar a Frente Nacional francesa, como faz ponto de honra em ser ainda pior. Sim, sim, leu bem, ainda pior. Frauke Petry receia que o Ocidente possa ser submergido pelo Islão e pensa que é preciso impedi-lo por todos os meios. E quando Frauke Petry (cuja agressividade do discurso está próximo do movimento de rua Pegida) diz “todos os meios”, está mesmo a pensar no pior. Mas o pior mesmo é que o seu partido ultra-nacionalista não pára de subir nas sondagens. Os seus fantasmas, que constituem uma incrível mistura de certas ideias do período mais negro da Alemanha do século passado com a SED [Sozialistische Einheitspartei Deutschlands, i.e., o partido comunista que esteve no poder na Alemanha de Leste até à queda do Muro] dos tempos da RDA, não parecem chocar muitos eleitores alemães, pelo contrário.

Numa entrevista recente, Frauke Petry refere, usando terminologia da ex-RDA, a necessidade de “instalações de securização das fronteiras”. Seria útil lembrar que a RDA, desmantelada em 1989, conseguiu transformar a Alemanha de Leste num Estado hermeticamente fechado, não para impedir as pessoas de lá entrar (apesar de ter conseguido impedir a importação de bens, de ideias, de obras de arte, etc, provindas do Ocidente) mas sobretudo para impedir os cidadãos da RDA de sair do país. Uma espécie de enorme prisão, dotada de “instalações de securização das fronteiras” equipadas com autómatos-atiradores, e que custou a vida de numerosas pessoas que tentaram atravessar essas “instalações de securização das fronteiras”. Curioso fantasma, este evocado por Frauke Petry que, ademais, pretende que os guardas fronteiriços usem armas para atirar sobre os refugiados que tentem penetrar ilegalmente em solo alemão. Em suma: a pena de morte por ter ousado atravessar uma fronteira nacional.

Guardas fronteiriços que atiram sobre refugiados que tentam passar a fronteira? As reacções não se fizeram esperar. Thomas Oppermann, chefe do grupo parlamentar do SPD no Bundestag, indignou-se com esta proposta, que lhe recordou, justamente, a época da RDA. A chefe do grupo dos Verdes, Katrin Göring-Eckert, considerou que Frauke Petry “revela o rosto feio da AfD”. Enquanto isso, o chefe do Die Linke, Jan Korte, encontrou uma formulação interessante: “Essas declarações levam a crer que Frauke Petry deveria sentir-se em casa na Coreia do Norte”. O chefe-adjunto do Sindicato de Polícia, Jörg Redek, declarou, quanto a ele, que nenhum polícia alemão atirará sobre nenhum refugiado, e considerou os propósitos de Frauke Petry “radicais e desprezíveis”. Outros comentadores limitaram-se a qualificar Frauke Petry como uma “doente mental”.

Mas as propostas de Frauke Petry encontraram também ecos positivos. Foi o caso da eurodeputada Beatrix von Storch, pelo AfD, claro, que, a uma pergunta de um jornalista sobre se achava bem que a polícia atirasse sobre as mulheres e crianças que tentam atravessar a fronteira alemã, respondeu que sim. Simplesmente que sim. Na sequência de inúmeras reacções, tentou relativizar e precisou que a polícia deveria organizar-se de modo a que a aplicação dessa medida deixasse de ser necessária. E Beatrix von Storch ainda acrescentou que o melhor seria evitar atirar sobre as crianças. Sobre as mulheres tudo bem, pois elas têm consciência dos seus actos.

Schengen? Europa? Valores humanistas? A extrema-direita alemã não respeita nenhum deles. Pensar que os defensores de tais ideias se sentam no Parlamento Europeu…

Os números são o que são: o AfD tornou-se a terceira força política na Alemanha, atrás da CDU/CSU, cujos numerosos antigos eleitores estão neste momento a trocar o partido de Angela Merkel pelo AfD. Enquanto isso, o SPD ganha pontos aos Verdes, ao Die Linke e ao FDP. Se as sondagens se confirmarem, o AfD continuará a pontuar. Graças a um ambiente muito estimulado pelo discurso do ódio e do medo.

 

Imagem: (c) Maja Hitij

About Sarah Adamopoulos

Antiga jornalista profissional. Antiga editora e tradutora freelancer (criação e produção editorial). Anda pelos blogues desde 2003, bons lugares para a escrita rápida e para o debate de sociedade. Autora de vários livros, entre os quais "Agosto" (literatura, 2023) e "Voltar – memória do colonialismo e da descolonização" (investigação historiografia, 2012). Traduziu para português europeu, por sua iniciativa editorial, o primeiro grande estudo económico sobre a desigualdade no Mundo publicado no século XXI ("O capital no século XXI", de Thomas Piketty). Escritora e dramaturgista, tem sempre espectáculos de teatro e poemas na cabeça.

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