PATRÍCULA ELEMENTAR

«A nossa pequena pátria, a nossa patrícula.» B. Vian

Newshold, Global Media, a mesma história

A tentativa de desmantelamento da Global Media tem feito barulho na comunicação social portuguesa. A conjuntura favorece essa reverberação, que de resto muito aplaudo: a esquerda do PS ainda a governar, o Bloco de Esquerda numa fase de regeneração por via de uma nova liderança, e um ambiente internacional propício ao debate sobre o papel do jornalismo nas democracias.

Fui colaboradora da Global Media durante vários anos e assisti, de fora, na espécie de ‘galinheiro do coliseu dos jornalistas precários’, à degradação dos diferentes títulos do grupo. Quando comecei a colaborar, a revista de domingo distribuída com os jornais DN e JN imprimia 400.000 cópias que chegavam ao país todo, competindo, sobretudo a Norte, há que dizê-lo, com o Correio da Manhã, por um lugar em todos os cafés de Portugal.

Recordo o momento em que a esses dias de glória sucedeu o início do que agora ganhou inédita visibilidade. Uma reportagem que valia 600 euros passou a valer 300, um perfil que valia 300 passou a valer 150 euros, e, em 2016, pagaram-me 150 euros por um artigo sobre Nicolau Breyner, quando o actor morreu, por ter sido eu a sua única biógrafa (uma encomenda pelos 50 anos de carreira, completados em 2010). Estava nesse momento encontrado o ponto mais baixo dessa queda. Senti vergonha alheia pelo DN. Mas a verdade é que desde 2010 que havia praticamente suspendido todo esse meu jornalismo freelance, por não mais ser possível pagar as minhas contas com os novos valores a título de honorários. Fui fazer outras coisas, trabalhar com livros.

Afastei-me então de uma condição que todavia permanece sendo parte de mim. Como qualquer jornalista a sério (pois há-os que não o são), não apenas fui mas sempre serei uma jornalista. Sucede que já não exerço, à imagem do que fazem os antigos advogados que se apresentam como juristas por já não exercerem. Por causa dessa condição, não sou indiferente ao Congresso de Jornalistas que neste momento decorre. Mas, ao mesmo tempo, sinto que não pertenço, por não me rever em muito do que por lá se passa. E não é de agora.

A título de exemplo, penso que alguns responsáveis pelas redacções precisariam de olhar para dentro de si próprios e fazer um mea culpa, pois os accionistas dos grupos de comunicação social têm contado com a sua cumplicidade. Desde logo, todos os que aceitaram aplicar nas redacções modelos de negócio que nada têm a ver com o jornalismo. Modelos que mataram o jornalismo da rua, a investigação, o jornalismo de texto longo, e, juntamente com isso, a memória do próprio jornalismo, dispensando os jornalistas mais velhos, alegadamente por serem caros de mais.

Em 2016, escrevi uma peça de teatro chamada Limpeza, inspirada no que aconteceu em 2015 quando dezenas de jornalistas foram despedidos dos jornais i e Sol. A 30 de Novembro de 2015, a empresa de comunicação social Newshold levou a cabo um plenário, dirigido pelo administrador-delegado dos accionistas, Mário Ramires, com o objectivo de anunciar o despedimento de mais de uma centena de jornalistas (até então ao serviço das redacções dos jornais Sol e i) e conseguir o acordo daqueles em prescindir do direito de indemnização.

A pedido de Mário Ramires, num estranho desejo de transparência que o exporá nas suas idiossincrasias, o som do plenário foi gravado – e logo disponibilizado na internet. Transcrevi, sem tirar nem pôr (a realidade bate a ficção, sempre), muito que foi dito por Ramires no decurso desse longo plenário, de que seria praticamente o único orador, com excepção de uma jornalista cujas tímidas (mas ainda assim corajosas) intervenções o texto também transcreveu parcialmente.

Para além da questão de fundo – o despedimento colectivo de duas redacções –, interessou-me trabalhar cenicamente o tom extremamente paternalista, autoritário, quase marcial, do orador populista sem escrúpulos. Mas também a passividade dos jornalistas presentes, que replica o que se passa noutros contextos, de outros despedimentos, noutros sectores, muito embora seja especialmente intrigante tratando-se de jornalistas – uma classe da qual se esperaria uma atitude mais esclarecida e consciente dos seus direitos.

Dizer por fim que quando, em 2008, os accionistas da Newshold investiram dinheiro na imprensa, já não fazia qualquer sentido financiar projectos em suporte papel e no modelo de negócio sustentado na publicidade. E no entanto, o investimento foi feito, claramente em favor da manutenção de títulos passíveis de servir interesses sem relação com uma das sempiternas missões do jornalismo: ser um espelho vigilante e escrutinador dos poderes. O que isso nos diz sobre a independência do jornalismo entretanto praticado é extremamente preocupante.

Mais tarde, transformei os jornalistas em actores e a redacção numa companhia de teatro: o espectáculo Fósforos, ensaiado durante a pandemia, estreado em Julho de 2021. A cena central desse espectáculo desconstruiu muito do que foi dito no referido plenário de despedimento colectivo de jornalistas, denunciando os actuais modos de despedir pessoas sem justa causa: com assédio moral, paternalismo, manipulação, autoritarismo, populismo, abjecção. Depois de tratarem essas pessoas como se não merecessem respeito, gerando ambientes de trabalho tóxicos e sustentados em relações de poder, desvalorizando o trabalho intelectual de um modo que considero aviltante.

Mais textos sobre jornalismo aqui.

About Sarah Adamopoulos

Antiga jornalista profissional. Antiga editora e tradutora freelancer (criação e produção editorial). Anda pelos blogues desde 2003, bons lugares para a escrita rápida e para o debate de sociedade. Autora de vários livros, entre os quais "Agosto" (literatura, 2023) e "Voltar – memória do colonialismo e da descolonização" (investigação historiografia, 2012). Traduziu para português europeu, por sua iniciativa editorial, o primeiro grande estudo económico sobre a desigualdade no Mundo publicado no século XXI ("O capital no século XXI", de Thomas Piketty). Escritora e dramaturgista, tem sempre espectáculos de teatro e poemas na cabeça.

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This entry was posted on 21 de Janeiro de 2024 by in Jornalismo, Patrícula elementar and tagged , , .

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