PATRÍCULA ELEMENTAR

«A nossa pequena pátria, a nossa patrícula.» B. Vian

Viver, mas mal. João Canijo, talvez apogeu.

Viver, mas mal. Viver abusados na nossa diferença, na nossa insegurança, na nossa sensibilidade, na nossa delicadeza, pela vossa neurose, de que somos uma excrescência, corpo da vossa doença, como diria o meu amigo Raul. É preciso escapar-vos, sem dúvida. Viver assim, mal, embora remediados, tendo por propriedade um hotel com piscina, não longe do mar, que à noite, que mais à noite, parece um quadro de Hopper (toda a gente diz isto, Edward, tal como toda a gente fala na espuma dos dias, Boris). Lembrei-me de um quadro de Max Ernst (a piscina), lembrei-me da fronteira que é um lugar assim, dentro da civilização (bons vinhos, gente que sabe sobre eles), mas habitado pelas bestas, e desde logo pela grande mãe horrorosa.

Viver, mas mal, debaixo da asa de uma pelicana com ar de mãe perfeitamente normal (se calhar é porque é!), uma mãe que provê, que mais lhe é pedido, afinal de contas? As mães servem para prover, desde que façam isso tudo o resto é secundário. Prover é levar a espécie a bom porto, é encher os tubos digestivos gerados e deixar a sua metafísica para  outros. Se ser mãe fosse só isso, ó tragédia de quem não pensa, de quem só engravida, pare e alimenta – outra conversa, pois.

Viver, mas tão mal que uma pessoa não consegue ser mãe da própria filha, por haver lá atrás uma outra mãe, ou a memória de quem foi, que não deixa. A sua sombra paira, está sempre por perto, com recriminações e porrada para dar, como Sara (Rita Blanco) faz a Piedade (Anabela Moreira), nome que revela a constelação de maldade bruta que anima aquela família,  cunhado à nascença que é para não falhar, sendo capaz de prosseguir o seu caminho danado até à geração seguinte, atingindo também Salomé (Madalena Almeida), a filha de Piedade, todas carentes da humanidade bela de uma mãe.

João Canijo fez com estas e outras personagens, todas fortíssimas, de uma composição de se lhe tirar no chapéu (tiro-lhes o meu!), uma obra prima. Canijo fez com esse lugar (um hotel decadente, com uma piscina, num lugar belo) dois filmes: Mal Viver e Viver Mal. Gostei mais de Mal Viver. Para mim esse é o filme deste díptico excelentíssimo, com fotografia e som que trouxeram algo novíssimo ao cinema feito por portugueses. Um depuramento muito para além do artístico, depuramento técnico, também, como elemento fundamental da arte que é fazer cinema. O trabalho com o som, em particular, deixou-me pasmada. Nunca tinha ouvido nada assim.

Mal Viver e Viver Mal, de João Canijo (2023). Com Rita Blanco, Anabela Moreira, Madalena Almeida, Clea Almeida, Vera Barreto. Urso de Prata – Grande Prémio do Júri do Festival de Berlim (2023).

About Sarah Adamopoulos

Antiga jornalista profissional. Antiga editora e tradutora freelancer (criação e produção editorial). Anda pelos blogues desde 2003, bons lugares para a escrita rápida e para o debate de sociedade. Autora de vários livros, entre os quais "Agosto" (literatura, 2023) e "Voltar – memória do colonialismo e da descolonização" (investigação historiografia, 2012). Traduziu para português europeu, por sua iniciativa editorial, o primeiro grande estudo económico sobre a desigualdade no Mundo publicado no século XXI ("O capital no século XXI", de Thomas Piketty). Escritora e dramaturgista, tem sempre espectáculos de teatro e poemas na cabeça.

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This entry was posted on 25 de Abril de 2024 by in Cinema, Portugal imortal and tagged , , , .

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